quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

ARCO DOURADO

 E então publico aqui o meu tradicional conto de natal .

Agradeço atodos que leram meus textos em 2025 e interagiram comigo nas minhas plataformas. Muito obrigado. 

E aproveito para desejar a todos um feliz natal e um ótimo 2026 :

E acessem a platforma Wattpad para conhecer o Navidad meu livro inteirinho sobre natal. 

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***

Precisou passar pela casa do arco dourado até chegar à casa da tia. Parou, olhou demoradamente e seguiu. O som que o sapato de mocassim fazia nas pedras da rua, quebrando o silêncio da noite, o assustava. Era prenúncio de algo grande. Aquela noite prometia.

Subiu os pequenos degraus bem devagar. Parecia ter medo. A casa da tia Lourdes era muito parecida com a casa do arco dourado. Feitas na mesma época e no mesmo estilo, eram retratos do mesmo cenário, sem cores muito definidas, daquele seu amado subúrbio. Bateu forte à porta. Ela tinha fama de surda. E demorou mesmo a abrir.

Ficou um pouco impaciente. Depois de três batidas, ouviu o arrastar de uma chinela. Ela vinha lentamente.

A porta se abriu e, por trás dela, um sorriso.

— Gerson. Não acredito!

— Oi, tia. Bença. Quanto tempo!

— Deus te abençoe. Então resolveu lembrar dos pobres. Dá um abraço. — Um abraço com forte cheiro de cigarro, loção amaciante e um tanto quanto caloroso.

— Entra, filho, entra.

Entrou estranhando um pouco a casa. Algumas coisas haviam mudado. No canto da sala existia um baú grande. Sobre o sofá, um gato preto enrodilhado. E um pouco de desordem. Coisas que não existiam nos velhos tempos.

— É, tem mesmo muito tempo que não passa por aqui. Virou rico agora.

— Ah, tia, para com isso. Sabe como é, a correria da vida...

— Me fala de você. Um doutor agora, hein. Sempre sonhou ser médico. Que alegria, gente. Sua mãe deve estar radiante. Essa é outra que quase não vem por aqui.

— Isso é por causa da briga com o tio Geraldo. Ela não pode nem sonhar em vê-lo. Mas, respondendo à sua pergunta, eu estou bem, tenho meu consultório lá no centro e atendo também pelo SUS, lá no posto de saúde lá no Santa Clara, Também No mais sem novidades.

— Mas tá feliz, meu filho, tá?

— Sim, tia, muito feliz.

— E as coisas por aqui, como estão?

— Ah, o Geraldo cada vez mais louco. Só bebida e confusão. Ele briga com todo mundo. Está morando lá naquele barracãozinho imundo. Só arranja confusão. E depois da morte da mãe, ele piorou. Tudo piorou.

— Eu passei lá, tio, em frente à casa do arco dourado. Parei, lembrei... Tanta coisa veio à cabeça. É difícil de acreditar que a vovó se foi.

Ela se levantou, incomodada pela conversa. Foi até a geladeira, pegou o vidro de água, colocou no copo e bebeu de uma vez. Parecia querer afogar as mágoas.

— Você quer água?

— Quero sim. Obrigado.

Bebeu a água sentindo um gosto estranho na boca

A tia foi até a mesa branca de fórmica, pegou o maço, tirou um cigarro, acendeu, tragou, depois deu umas duas tossidas de peito cheio e ofereceu a ele.

— Não, tia, eu parei.

— Você é que está certo, mas eu não consigo parar.

— Está fugindo do assunto, tia.

— Falar da sua avó dói demais. Eu não consigo viver sem minha mãe. Ainda mais agora. Natal, né, a gente lembra das coisas. — O primeiro Natal é sempre o mais difícil. Todos dizem.

— Eu quero a minha mãe aqui comigo. Eu preciso tanto dela, é tão difícil, sozinha é tão difícil. Depois que o Ricardo saiu de casa e a mãe morreu... Tá uma barra! Por que ter filhos se um dia eles se vão. Se eu ainda tivesse meu marido aqui. Ah meu Deus. tanta coisa aconteceu... Eu quase nem vou lá na casa dela... Apenas peguei algumas coisas que estão ali naquele baú, mas eu não consigo passar nem lá perto.

Ela colocou a cabeça por entre as pernas e chorou.

— Vim aqui para conversar com a senhora, com o tio Geraldo, e resolver as coisas. Tia Marta disse que vocês querem vender a casa. Eu me prontifiquei a cuidar do assunto. Tenho um amigo advogado e ele é especialista em inventário, essas coisas, ele vai me ajudar. Tenho que levar os documentos para ele. E até já tenho um possível comprador. Outro amigo meu está interessado.

— É, acho que é melhor mesmo. Vender e acabar com tudo. — Ela passou apressadamente os dedos esqueléticos sobre os cabelos brancos num frenesi de intenso nervosismo. Os sulcos das rugas do seu rosto magro e desesperado pareciam tornar-se mais fundos. Estava na cara que dispor daquela casa a incomodava bastante. No mesmo gesto desesperado, tremendo, tragou o cigarro, aproveitando para suspirar ao expelir a fumaça. Ele volveu seu olhar terno e fixou-a demoradamente, enquanto pensava: “Como a tia Lourdes está acabada! A morte da vovó foi mesmo uma devastação nessa família.”

— Acho que o tio Geraldo não vai empombar, não.

— Pelo contrário, aquele lá é louco por dinheiro. Dividir a herança é com ele mesmo.

— Eu quero ir até lá, tia. Eu quero olhar para a casa, eu quero tocar as coisas.

— Não sei, não.

— E os documentos da casa, escritura, planta, essas coisas, estão com a senhora?

— Não, devem estar lá.

— Mais um motivo para irmos.

— Ai, meu Deus, será que eu consigo?

Levou um tempo consolando a tia e convencendo-a a ir até a casa do arco dourado.

Saíram os dois de mãos dadas pela rua.

— Calma, tia, a senhora está tremendo.

— É muito difícil para mim, meu filho.

— Não mudou muita coisa por aqui, não. Por que será que eles não asfaltam essa rua?

— Ela é tombada pelo patrimônio histórico, não podem mexer em nada.

— Pensando bem, isso é ótimo. Assim será sempre a nossa rua. Olha só as mesmas antigas casas. ..Todas cheias de contornos e desenhos, arcos nas portas...

— Lá está ela, tia. A famosa casa do arco dourado. É um ouro vivo na vida da gente. A casa da vovó.

— Ai, meu Deus!

— Eu e o Luquinha jogamos tanta bola aqui em frente a esse portão. A capetada da rua fazendo bagunça. Parece que está acontecendo agora. Ai, que saudade!

— E a dona Julieta ficava brava e jogava água em vocês.

— Oh, velha chata aquela! Ela furou minha bola quando caiu lá na casa dela. Ai, que ódio que eu fiquei!

— E ali está a casa da Marcinha. Sua namoradinha.

— Namoradinha só nos meus sonhos, ela nunca soube. O tal do amor platônico. Perdi a conta de quantas vezes passei em frente a essa casa de bicicleta só para vê-la. E quando ela chegava à janela, ah, meu coração disparava. Por onde será que ela anda, hein? As pessoas somem no mundo e a gente nunca mais tem notícias. Vamos perdendo um e outro. Tanta gente se mudou daqui. Acho que não é mais a mesma rua.

— Me lembrou aquela música: “Aquela rua não é mais a mesma rua, ficou tão diferente desde que você mudou.”

— “Aquela casa não é mais a mesma casa, agora está tão triste, sente falta de você.”

— “E quando olho na janela e não te vejo, sinto falta e desejo do amor que eu perdi, sua presença me não sei fascina você é a menina que nasceu só para mim.”

— Eu chorava ouvindo essa música depois que ela se mudou.

— Era um povo bão aquele dela.

— Tia, por que a gente parou no meio da rua?

— Para conversar, uai.

— Não senhora. Vamos andando. Tem que enfrentar as coisas, tia. Nós vamos entrar lá.

— Eu tenho medo, eu nem sei o que eu sinto. Toma... aqui está a chave. Você abre.

Ele chegou em frente à casa, destrancou e abriu o cadeado do portãozinho. Continuava rangendo, mas agora era um som diferente. Ao contrário daqueles, o rangido não era mais um arauto de alegria, era mais um gemido de dor.

Andou olhando para o chão enquanto ia do portão até a porta.

— Tia, os vasinhos de planta da vovó. Tudo seco.

— As plantas também estão mortas.

— Deveriam ter cuidado delas.

— Tem razão. Essas plantas eram tudo para ela. Ela acabou e as plantas também. Tudo murchando, apodrecendo.

— Tia, segura a onda.

Subiu lentamente os degraus. Cada passo era uma pancada no coração. Estava muito perto de descortinar um passado incrível.

As paredes eram brancas, mas estavam descascadas. Por baixo, havia um pouco de vermelho.

Essas casas antigas sempre foram repintadas muitas vezes.

A janelinha da frente do quarto da avó, ao lado do alpendre e do arco, tinha alguns vidros quebrados.

No chão, telhas caídas.

O abandono abraçava o lugar.

Olhou para o arco na entrada do alpendre. Aquilo sempre o fascinou. Podia-se ver de longe aquela entrada, cor de ouro bem amarelo, contrastando com o fosco da pintura desbotada do resto da casa. Sempre comparou aquilo a um portal mágico. O portal de um castelo de sonhos. Os umbrais da alegria. Quando passava por ali, uma luz parecia acender-se dentro dele.

— Era aqui, nesse alpendre, que ela chegava para nos chamar para o almoço. “Vem, turma, o banquete está na mesa.” Ou para o café da tarde... com aquele maravilhoso biscoito de queijo...

Hesitou, colocou a chave na fechadura. Hesitou de novo. Giro ou não giro?

Olhava para a tia. E ela segurava um lenço junto à boca.

Expectativa...

O que ainda existe ali? E o que foi embora?

Girou devagar, como quem quer e, ao mesmo tempo, não quer.

— A porta emperrou, tia.

— Não quer abrir. Isso é um sinal, Gerson. Vai ver a mãe não quer que a gente entre.

— Besteira, tia. O problema é na fechadura, acho que não está destravando direito.

— Eu estou sentindo um negócio esquisito aqui. Acho melhor a gente ir embora.

— Não, tia. A gente vai entrar. Eu estou achando o jeito. Espere aí, acho que tem que levantar um pouco, forçar para cima para destravar a tranca. Vamos lá...

— ABRIU.

A luz penetrou devagar pela fresta da porta e foi iluminando uma estrada colorida de lembranças, salpicando o chão de cacos de vida.

— Ah quanta poeira Gerson !

— Olha, o tapetinho ainda está na porta tia.

— Isso é porque a casa está muito limpa. Nunca vi

— O tapete trançado que a mamãe tecia. Ficava horas e horas trabalhando nisso.

— Tudo igual, tia. A estante de madeira retorcida. A televisão de tubo. Philips, meu Deus, me lembro da gente sentando aqui na sala assistindo desenho animado. Será que ainda funciona?

— Não, essa aí já era.

Pousou o olhar demoradamente pela casa, pensativo, depois pôs-se em movimento. Caminhou por todos os cômodos reconhecendo os outros objetos. A mesa de fórmica branca. O armário marrom de oito portas que a avó chamava de guarda-comida — coisa dos antigos. O guarda-louças com os pratos esmaltados, objetos bonitos, cheios de desenhos e contornos. O fogão à lenha. O filtro de água que a avó chamava de talha. Tudo coisa de outros tempos que ela insistia em manter, dizendo que as coisas antigas eram melhores. A mulher viveu até noventa anos e conservava seus pertences de toda uma vida como pedacinhos de ouro.

Os quartos, a cama onde ele havia dormido por muitas vezes.

A cômoda da santaria, nicho da casa dedicado à fé, com inúmeras imagens de santos. Em destaque, ainda estava ali a grande imagem de Nossa Senhora Aparecida. Veio imediatamente à mente a avó ajoelhada, rezando num dia de tempestade, pedindo para que Nossa Senhora aplacasse a tormenta e livrasse a todos das terríveis goteiras que inundavam a casa.

— Parece que tá tudo acontecendo aqui e agora, não é?

— É, tia, parece que é tudo no agora. Essa mesa da sala, o pessoal reunido jogando truco e gritando. Comendo biscoito de queijo com café. Posso ouvir as risadas, lembro das piadas, das gracinhas do tio Geraldo. Da tia Inês, que Deus a tenha, xingando a gente. Oh, mulherzinha braba! Estão todos aqui, tia. Todos reunidos agora nessa sala. Eu sinto isso.

— Vamos embora. Eu não aguento.

— Viemos aqui para procurar os documentos da casa. Vamos encontrá-los e já vamos embora. Onde podem estar?

— No quartinho dos fundos. Tem uma papelada lá.

— Vamos lá.

— Ah, e a minha alergia?

— Fique aqui, tia, eu vou revirar as coisas por lá.

Era uma bagunça só aquele quartinho. Móveis antigos com gavetas abarrotadas de recibos de contas e boletos pagos. A avó não dispunha de nada.

Espirrou, tossiu, lembrou-se de que também tinha alergia, mas pôs-se a procurar...

Por sorte, não demorou a encontrar os papéis de que precisava.

Feliz, já se preparava para fugir daquele depósito de ácaros quando algo chamou sua atenção: dois objetos sobre uma antiga mesa. A caneca de alumínio que o vovô bebia água e um pequeno carrinho de madeira.

Foi até lá, pegou o copo, girou-o nas mãos, observou bem, deixou que a lembrança cumprisse seu papel mágico de máquina do tempo e o transportasse para outras tardes quentes como aquela. Pôde sentir a água deslizando pelo copo e matando a sede do vovozinho que, após beber, dizia sempre:

— Eita, que água gostosa!

Pegou o carrinho, e sentiu uma emoção estranha lhe invadir, estar novamente com aquele seu brinquedinho nas maos traziam sentimentos diversos. sentiu a textura da madeira, o cheiro do guardado e observou cada contorno . tão bem entalhado e feito com tanto esmero era o carinho em forma de brinquedo. Lembrou aquela manhã de Natal. O presente do avô. O trabalho foi árduo na carpintaria para construir o mimo. Entregue a ele com os votos de Feliz Natal. Feliz, nem agradeceu direito e já saiu brincando de choferar.

Quando foi que esqueceu aquilo? Quando acontece de uma coisa tão importante, que foi o centro da vida da gente perder totalmente o valor e ficar assim, jogada num canto qualquer?

Lembrou-se de uma frase que leu em um post do Facebook: “Um dia brincamos pela última vez na rua com nossos amigos, sem saber que seria a última vez.”

Quando foi a última vez que brincou ou que viu o viu?

E descobriu ali, naquele momento, que havia ganhado o mesmo brinquedo por duas vezes. O avô lhe dava de novo aquele mimo para o resto da vida. O brinquedo seria enfeite na estante, fazendo lembrar de uma existência maravilhosa. Será que não foi o espirito do avô que o conduziu até aquele quarto de bagunça para lhe desejar assim um feliz natal?

“Parece, vovô, que passar pelo arco dourado é mesmo algo mágico. A mágica daqueles tempos voltou. Dois natais, o mesmo velho presente, a mesma alegria de renascer na doce e maravilhosa aventura da vida mais simples e gostosa.

Feliz Natal, vovô. Não foi por acaso que eu vim aqui, foi para resgatar essa história. Eu vou comprar essa casa, não vai se perder tudo isso, não vai se perder. Esse presente fica para sempre. Obrigado pelo carinho e pelo carrinho. Te amo, vovô, vovó, família... Eu vou comprar essa casa e seremos eternos nela. O arco dourado de vida e de acontecimentos maravilhosos é mesmo mágico.”

***

O Natal é quando passamos pelos arcos dourados da nossa existência e sabemos valorizar cada minuto. É o renascer da emoção, e assim todo dia é Natal.

MÚCIO ATAIDE


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